Por Thiago Souza Vale (professor de Geografia – Ensino Médio)

 

O ano de 2020 é um ano marcante para mim. Início uma nova etapa da minha trajetória profissional no CSL como Professor de Geografia no EM. Esse fato em si já carrega os desafios inerentes a construção de um novo currículo estabelecido em uma nova sede para uma instituição sólida e com ampla tradição na educação paulista.

Porém em março de 2020 fomos surpreendidos com o imprevisível: uma pandemia. O contexto da novidade e euforia deu lugar a incerteza e sobretudo a imprevisibilidade. Toda a comunidade escolar em menos de uma semana se viu desafiada a construir um webcurrículo, porém sem as experiências acumuladas e necessárias para operar nesse novo modelo.

Nessa perspectiva iniciamos o ano de 2020 com polos epistemológicos consolidados para a elaboração das práticas cotidianas, associada aos fundamentos da educação inaciana e elementos da pedagogia como a colaboração (Vygotsky) e a experiência (Dewey). Porém a pandemia reformatou e refuncionalizou essas categorias, e de certa maneira nos obrigou a refletir bases epistemológicas para um currículo em contextos e parâmetros incertos e imprevisíveis. O fato fundamental é que as TDIC reconstrói o presencial no virtual, mas sem a sua totalidade, pois afinal, é impossível digitalizar a vida escolar e toda a sua afetividade.

Essa construção curricular é extremamente desafiadora pois o currículo foi reduzido da vida para a tela de um dispositivo eletrônico. Este paradoxo, reflete antagonicamente as teorias sobre currículo, em que estas descrevem a necessidade da fisicidade, da corporeidade, do diálogo, dos conflitos, da afetividade, dos sentidos estéticos e científicos no cotidiano escolar.

A palavra currículo etimologicamente significa caminhos, e dessa forma a pandemia nos obrigou a traçar novos caminhos curriculares. Para além de uma visão simplificada de currículo como grades e disciplinas, a minha concepção de currículo não se limita as marcações organizacionais da escola, pois compreendo as ações no espaço escolar como aspecto formativo, de forma clara, oculta, implícita e explícita. Dessa forma trabalhar o currículo em contextos digitais implica necessariamente na compreensão dos processos de integração curricular das TDIC, assim como as exigências e os desafios para a implementação de práticas pedagógicas alinhadas ao arcabouço teórico-metodológico “Webcurrículo”, conceito este proposto pelos Professores José Armando Valente e Elizabeth Almeida do Departamento de Pós Graduação em Educação: Currículo da PUC-SP.

O webcurrículo é o currículo que se desenvolve cotidianamente, entrelaçado com as TDIC, de forma a refletir a tendência contemporânea de não enxergar esse currículo separado da cultura digital, permitindo dialogar com diferentes contextos e culturas, integrar educação formal e informal. Nesse processo dialógico de reconstrução do currículo, os alunos são incitados a ter postura ativa, mobilizando os conhecimentos das experiências cotidianas, que são integrados com as informações obtidas nas redes e com informações sistematizadas em fontes convencionais e representados por processos construtivos, que podem ser representados por meio de narrativas digitais com o uso das linguagens midiáticas e de múltiplos recursos disponíveis, levando à criação de webcurrículos.

De certa forma, a construção de webcurrículos sempre esteve presente em minhas práxis pedagógicas realizadas desde a graduação até o doutorado. O ponto é que sempre defendi a integração entre currículo e TDIC em contextos digitais com abordagens pedagógicas críticas, criativas e significativas, e nesse momento de pandemia todas as minhas experiências acumuladas durante uma década de pesquisas, poderia consolidar essa possibilidade e dissolver um falso dilema entre tecnofóbicos e entusiastas ingênuos.

Nesse viés a integração entre currículo e TDIC em tempos de cultura digital e pandemia, se faz extremamente necessário para dar continuidade às práticas pedagógicas. Essa integração oferece transformações mútuas para o currículo e para as tecnologias, pois os procedimentos de comunicação, avaliação e interação são profundamente alterados. Nesse processo é importante salientar que as tecnologias disponíveis não são neutras e carregam em si uma série de intencionalidades e contradições, e as mesmas devem ser utilizadas criticamente e subordinadas ao processo pedagógico, buscando evitar cenários de alienação e encantamento técnico.

Nesse contexto o currículo do CSL demonstra-se permeável e flexível para a utilização de TDIC sob concepção de um currículo integrador, experimental e problematizador, possibilitando aplicações curriculares em contextos digitais coerentes com as abordagens de uma educação inaciana  dialógica, reflexiva e solidária por meio de processos interacionistas. Assim, a potência do currículo não está na previsibilidade, mas sobretudo na abertura e nas imprevisibilidades, ou seja na necessidade de encarar o não experienciado, do que em contextos previsíveis, fechados e rígidos.

O CSL de maneira assertiva, transparente e corajosa, se manteve junto com seus estudantes, familiares e funcionários, e criou e aperfeiçoou mecanismos para possibilitar a viabilidade do processo pedagógico.

Para concretizar práticas pedagógicas compatíveis em um contexto emergencial, foi fundamental as decisões tomadas pelas equipes pedagógico-administrativa do CSL, sob os valores inacianos em que ninguém pode ficar de fora dos processos educativos durante as atividades remotas, ou seja, todos devemos estar juntos. Dessa maneira o CSL iniciou a construção de um webcurrículo, desenvolvendo processos interativos, reflexivos e colaborativos, exigindo um empenho e engajamento dos professores na elaboração e detalhamentos dos roteiros de estudos e os processos avaliativos de forma democrática e transparente. A instituição também teve que fortalecer toda a infraestrutura técnica e ampliar o diálogo com a comunidade educativa, além de emprestar dispositivos para os professores e prestar assistência pedagógica e emocional extremamente relevante para todos os profissionais envolvidos neste processo.

Assim pode-se observar que convertemos o problema da imprevisibilidade pandêmica em um projeto corajoso e fundamentalmente emergente das metodologias e práticas pedagógicas elaboradas pelos docentes, resultado do trabalho autoral de toda a equipe pedagógica do CSL. Esse fato em si revela o anúncio da construção do webcurrículo do CSL!

Nessa perspectiva segue abaixo um relato de situação de aprendizagem realizada objetivando a construção de webcurrículos sob a perspectiva dos valores inacianos e convergente com o currículo do CSL.

Os alunos da 1ª série do EM em abril de 2020, produziram um mapeamento colaborativo a partir de estudos populacionais e suas espacialidades, através de uma ação pedagógica que articulou diferentes enfoques ativos, com o software mashups Google maps, que recombina códigos pré existentes no ciberespaço, favorecendo a produção autoral colaborativa, por meio de objetos de conhecimento personalizados com base nos interesses dos educandos.

Figura 1 – Imagem extraída da situação de aprendizagem mapeamento colaborativo “ Investigando os desafios geográficos da humanidade”

Fonte: Autoria própria (2020).

 

Durante o planejamento dessa situação de aprendizagem, a seleção dos espaços (casa e escola) foi refletida para facilitar o processo de investigação, o respeito aos ritmos de aprendizagem dos educandos, e ambientes virtuais que possibilitam o diálogo e a colaboração. Nesse procedimento, os educandos e o professor discutiram temas selecionados pelos alunos, alinhados com as principais questões geográficas indicadas pelo currículo prescrito, sendo associadas ao processo da dinâmica populacional. Nesse sentido, os alunos investigaram seus objetos de conhecimento por meio dos princípios lógicos do pensamento geográfico, e apresentaram os resultados, as dificuldades e, dentro da possibilidade, formas de aprofundamento conceitual e mitigação dos temas analisados. O processo de avaliação ocorreu durante a apresentação dos resultados e com a organização de uma rubrica contendo atributos cognitivos e emocionais, informando os feedbacks do professor aos educandos, quanto à melhoria dos procedimentos.

No procedimento, os estudantes ampliam suas capacidades cognitivas associadas aos princípios lógicos do raciocínio geográfico, pois a geografia é uma cosmovisão, ou seja, uma forma de ler o mundo, e quando o educando reflete sobre o tema a partir de múltiplas escalas, localizações e dimensões do fenômeno, essa ação cognitiva favorece a construção do olhar geográfico crítico em que as representações, como mapas, são importantes, pois reflete interpretações de mundo, clarifica como produzimos a realidade e desfaz dogmas.

Figura 2 – Nuvem de palavras produzida com o software Nvivo, sobre as frequências de palavras mais recorrentes nos questionários de reflexão e de avaliação da aprendizagem realizadas pelos estudantes.

Fonte: Autoria própria (2020).

Ao observar a Figura 2, infere-se que o mapeamento colaborativo apresenta indícios da construção da educação geográfica na cultura digital, pois palavras como colaboração, participação, sugestão e conteúdos, organizadas e amalgamadas, possibilitam compreender a produção de webcurrículos, resultantes da emersão curricular cotidiana, associada às TDIC, que favorecem a expressão e representação dos princípios lógicos do pensamento geográfico.

Ainda sobre a análise da Figura 2, é importante destacar que a consolidação da educação geográfica se objetiva por meio do paradigma da educação libertadora e de práticas socioconstrutivistas, que possibilitam aos educandos a construção de conceitos, por meio de procedimentos dialógicos, sob uma práxis problematizadora e mediada pelas TDIC.

Porém é necessário mencionar a limitação pedagógica durante a situação de aprendizagem supracitada para a realização de procedimentos metodológicos como debates e simulações, dado as intencionalidades inerentes a esse enfoque que requer corporeidade e dialogicidade. É perceptível e compreensível que nossos estudantes estão se adaptando ao modelo online, e assim ações cotidianas como organização e preparação para as aulas estão sendo ressignificadas.

Conforme descrito a situações de aprendizagem relatada, a mesma indica indícios para a consolidação de webcurrículos, porém a instabilidade e a imprevisibilidade do contexto, requer atenção com as evidências de aprendizagem apresentadas pelos estudantes, pois as mesmas necessitam de reflexão e depuração dos resultados para uma compreensão pedagógica sólida.

É importante mencionar que estamos apenas iniciando essa jornada. Assim devemos, olhar os processos pedagógicos com calma e discernimento, e não confundir a viabilidade técnica da educação online com aprendizagem, pois conforme descrito nos resultados, a construção de webcurrículos devem estar alinhados com os elementos fundantes e estruturantes do currículo do CSL. Ignorar esse aspecto é negar o caráter contraditório das técnicas, que atuam dialeticamente no disciplinamento, no cerceamento e no controle dos processos educativos, mas também ajudam a potencializar situações de aprendizagem com intencionalidades democráticas, criativas e solidárias.

Outro item a ser mencionado refere-se a dimensão emocional dos estudantes. O currículo do CSL possui a singularidade do acolhimento, da colaboração e do diálogo com o corpo discente. Infelizmente a quarentena imposta pela Covid 19, redimensionou as categorias supracitadas, dificultando a compreensão e o acompanhamento dos estudantes em sua totalidade cognitiva e socioemocional. Mesmo assim, esse fato não imobilizou nossas ações, ao contrário, mobilizou todos os integrantes da equipe pedagógica para se ampliar os canais de comunicação com nossos estudantes, objetivando oferecer apoio e acolhimento neste complexo momento.

O nosso currículo pós pandemia certamente estará tensionado criticamente e imperativamente  entre a técnica e currículo, e a superação desse falso dilema está alicerçado na prática docente pois o uso de TDIC de forma pedagógica deve estar associada com uma visão de currículo crítico, democrático e solidário. O nosso desafio será compatibilizar a previsibilidade das tecnologias e dos marcos organizacionais da escola, com as incertezas inerentes ao currículo escolar. Esses aspectos são complementares, e nesse viés a imprevisibilidade deve ser compreendida como positividade e possibilidade de refletir práticas pedagógicas compatíveis com a realidade, em que os currículos sejam mais abertos, inconclusos e enriquecidos com indagações e vivências da prática cotidiana.

Porém na minha concepção, ainda é cedo para rotular esse processo como inovador em currículo, pois inovação não é a simples adoção de TDIC e muito menos a viabilidade técnica do processo.  A inovação se constitui na convergência das intencionalidades quanto a concepção de currículo e com práticas compatíveis, trabalhando com contextos emergentes e com as demandas imprevisíveis dos estudantes. E portanto nesta concepção, a inovação é um processo coletivo, interdisciplinar, democrático e sobretudo imprevisível.

Outro importante fator a ser relatado é a parceria com os estudantes e seus familiares, em que subitamente adaptaram suas rotinas e espaços para se conectarem com os ciberespaços do CSL. A paciência, o diálogo e sobretudo o respeito com os processos pedagógicos, foram fundamentais para o aperfeiçoamento deste modelo embrionário.

Por fim, não sei quando voltaremos para as quatro paredes da sala de aula, mas tenho a certeza que não podemos deixar ninguém para trás e fortalecer nossa coragem para lidar com os desafios do novo e do incerto neste período de pandemia.